tenho lido muito sobre a potência das narrativas. sobre essa capacidade que o narrar tem de (re)organizar sentimentos, afetos, percepções e posições que as coisas, pessoas e fatos ocupam em nossa vida. tem situações em que narrar cura. ameniza. ajuda a cicatrizar. falar, tecer, criar, recriar... tudo isso faz parte de um reelaborar-se. reelaborar o mundo, as vivências, as dores, memórias. cheguei por aqui alguns anos atrás em carne viva. tudo doía. reinventei minhas memórias incontáveis vezes, até não saber ao certo o que realmente aconteceu e o que foi fruto de imaginação. mas o que a gente inventa não deixa de ser, em certa medida, retratos da gente, certo? e faz tão (ou mais) parte do que somos quanto os "meros" fatos que nos afetam. e a cada vez que eu conto minha história, a cada releitura que faço de coisas que se passaram comigo, é como se eu me apoderasse de mim. como se os acontecimentos do passado subitamente adquirissem alguma plasticidade e a história da minha vida se tornasse um pouco elástica. como se o que foi não precisasse continuar sendo. como se quem fui não precisasse continuar sendo. e o retrato antigo estampasse um outro rosto. e depois outro. mais um. e outro. e cada um deles tivesse em si algum traço que carrego em mim, sem contudo me definir.
narrar tem um poder enorme: não só representa, mas cria. fornece versões. conecta fatos, expõe desejos, dá contorno a conceitos. narrar borda tramas novas na vida, desalinha e realinha tempos. resgata, rompe, questiona, responde. desvia, retoma, tece, desfia. narrar também silencia. ao reorganizar nossa percepção do ser, narrar nos torna.
* especialmente provocada por Paul Ricoeur, para quem "nossa própria existência não pode ser separada do modo pelo qual podemos nos dar conta de nós mesmos. É contando nossas próprias histórias que damos, a nós mesmos, uma identidade. Reconhecemo-nos, a nós mesmos, nas histórias que contamos sobre nós mesmos. E é pequena a diferença se essas histórias são verdadeiras ou falsas, tanto a ficção quanto a história verificável nos provêm de uma identidade" (Paul Ricoeur)
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